A última grande revolução social do século XIX

23/03/2021 (Atualizado em 23/03/2021 | 15:03)

reprodução internet
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Estamos comemorando este ano 150 anos da Comuna de Paris (1871). O EPMARX-UFPE estará realizando um grande seminário, a partir deste mês, para saudar e debater esse evento memorável. A mim, coube fazer o resgate histórico. Quando estudante da pós-graduação, na Universidade Estadual de Campinas, tinha a oportunidade de realizar um seminário sobre a “Comuna”. Há ocorrências históricas que se tornam emblemáticas e míticas. A luta dos “comunards” franceses é uma dessas. 

Reverenciada por Marx e Lenin, a Comuna de Paris tornou-se a fonte de um imaginário político auto-gestionário e socialista, a inspirar socialistas do mundo inteiro. Objeto de disputas retóricas e historiográficas entre anarquistas, socialistas e marxistas, a Comuna continua a suscitar polêmicas e sugestivas opiniões, entre os mais diversos militantes sociais.

Podíamos começar discutindo as interpretações clássicas que ajudaram a criar esse imaginário político revolucionário e socialista.

Quando eclodiu o movimento, que assinala o fim do ciclo expansionista e militar do governo de Luiz Bonaparte, Marx era o secretário da Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores. A hegemonia política da Comuna estava nas mãos dos anarquistas proudhonianos e de socialistas parlamentares como Louis Blanc. Quando as tropas militares do primeiro ministro Thiers esmagou, a ferro e a fogo, o movimento, Marx se imbuiu de produzir um relato edificante que perpetuasse a lembrança da luta dos “comunards” franceses. Essa obra é o que se conhece pelo opúsculo “Guerra civil em França”. Um texto laudatório e favorável, exaltando a coragem e a dedicação dos militantes. 

A obra, feita em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores, levaria a uma contenda retórica e política entre os marxistas e anarquistas, alimentada pelo rancor de Marx contra Bakunin, em razão do atraso na tradução de O Capital para a língua russa. Pior, a publicação do posfácio de Engels, mais tarde, comparava a Comuna com o que deveria ser a “ditadura do proletariado”. Essa disputa retórica e política entre anarquistas e marxistas conduziu ao fim da Primeira Associação Internacional dos trabalhadores e a separação definitiva entre comunistas e anarquistas. Muitos anos depois, descobriu-se no Museu de História Social de Amsterdam, onde está que sobrou da Comuna de Paris, os manuscritos redigidos por Marx sobre a experiência comunard francesa. 

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Esse texto é muito diferente do que Marx havia escrito, como secretário da AIT. É preciso dizer que o seu objetivo era muito distinto: aqui se tratava de fazer uma “autopsia” da estrutura e a política da Comuna, sob a hegemonia dos libertários e socialistas. Já no primeiro escrito, não. Era um epitáfio elogioso. Nesses manuscritos, Marx faz críticas aos militantes sociais, repara as hesitações da liderança em usar o Banco de França como trunfo para deter o massacre. Fala também do caráter pluriclassista da organização política da Comuna e debita tudo isso na conta da influência anarquista da direção do movimento e sua falta de centralização para tomada de decisões rápidas. Lenin não deixaria por menos. 

Em sua obra: “as duas táticas da socialdemocracia na revolução burguesa”, ele critica a confusão entre democracia radical pequeno-burguesa e socialismo, o que teria contribuído para a derrota do movimento.

Apesar de tudo isso, a experiência histórica e política da Comuna de Paris só ajudou a alimentar e reforçar o imaginário auto gestionário e socialista no pensamento social moderno e contemporâneo. A expressão “álgebra social”, empregada por um ensaísta brasileiro, para designar o significado histórico do movimento, procurou salvar a longevidade revolucionária do movimento francês, ao sugerir que ele pudesse ser preenchido pelos comunistas subsequentes com outros conteúdos ideológicos mais bem definidos doutrinariamente. 

De toda maneira, desenvolver essa expressão algébrica da revolução social, exigiria ou extirpar os ressaibos anarquistas ou radicaliza-los, no sentido de uma revolução democratizante no interior de socialismo auto gestionário, nunca num regime autoritário, burocrático ou militar. 

Transformar essa álgebra numa “Ditadura do proletariado” exigiria abjurar de uma vez a concepção blanquista e autoritária do socialismo em favor de uma democracia de base, auto-organizada, parecida com os modelos das sociedade ácratas, defendidos pelos anarquistas. A experiência e tradição bolchevique não combinavam com isso. Nem a centralização dos modernas forças produtivas capitalistas. Ou, como disse Weber, a racionalidade instrumental e burocrática da empresa e do Estado modernos.

O desafio da experiência “comunard” francesa à imaginação socialista de nossa época é como conjugar socialismo e autonomia, socialismo e liberdade. Socialismo e respeito às diferenças, num mundo cada vez mais complexo.

*Michel Zaidan Filho é filósofo graduado pela Universidade Católica de Pernambuco, Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas e Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Foi professor dos departamentos de História e Sociologia da Universidade Federal da Paraíba e atualmente leciona no Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco.

Fonte: por: Michel Zaidan