Intolerância religiosa e racismo andam lado a lado no Brasil

14/06/2022 (Atualizado em 14/06/2022 | 13:37)

Foto: Flickr
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O racismo está na raiz da sociedade brasileira desde a nossa formação enquanto país. Também está atrelado a uma série de aspectos, incluindo o religioso. E é necessário pensar o aspecto religioso de forma ampla, à luz das muitas mudanças sociais que caracterizam os tempos atuais.

Desde o período colonial, tudo o que se referia à cultura dos povos não-europeus era discriminado e reprimido por uma série de razões: uma delas era consolidar o processo de dominação sobre o território, o que passa por transformações forçadas do ponto de vista cultural, religioso, linguístico, dentre outros. Indígenas, africanos e seus descendentes que sustentavam o sistema escravista eram obrigados a abrir mão da própria identidade, de modo a contemplar os interesses da elite dominante — essencialmente branca e fortemente influenciada pelo modo de vida europeu.

A estrutura da sociedade brasileira e o modo como ela lida com questões inerentes à parcela preta e pobre não mudaram muito com o passar dos anos. Ainda há uma tendência forte ao menosprezo e à ridicularização de como os negros e negras vivem e do que fazem nos mais diversos âmbitos, passando pela arte, pelo esporte e pela religião.

Pesquisa realizada pelo DataPoder no final de 2020 revelou que 81% dos brasileiros veem racismo no país, mas apenas 34% admitem terem preconceito. E, para outros 13%, não existe racismo no Brasil. Esses dados fazem um diagnóstico interessante da nossa identidade enquanto povo marcada pela hipocrisia e pela dificuldade de lidar com as próprias mazelas. Em junho de 2020, o trineto de Dom Pedro 2º, Bertrand de Orleans e Bragança, disse em uma live promovida pela Fundação Alexandre de Gusmão que não existe preconceito racial no país: “Estão procurando criar esse problema racial, mas não conseguem. Aqui, todos nos damos bem. Aqui no Brasil, todos nós vivemos bem”.

O preconceito contra as religiões majoritariamente praticadas pelas pessoas escravizadas séculos atrás continua a existir. Porém, hoje em dia, observamos que, independentemente de qual seja a crença de grupos afrodescendentes, seja ela cristã ou não, a intolerância existe — e isso tem muito mais a ver com racismo do que puramente com preconceito religioso.

“São todas as nossas dores aqui listadas. São órgãos que nos maltratam, que nos massacram. Estou aqui para falar enquanto povo preto, que sustenta esse país que não nos respeita, que tira nosso direito à vida. Porque nossas águas, nossas matas, nossa terra, nos dão a vida. Se tiram isso, nos matam! Nos fazem morrer de banzo, nos fazem doentes, nos fazem sangrar todos os dias!”. A fala de Mãe Donana, liderança comunitária e espiritual do Quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas, expressou uma dimensão mais profunda do sofrimento contido em centenas de depoimentos de pessoas que fazem parte das religiões de matriz africana.

O terreiro do babalorixá pai Samuel, por exemplo, foi incendiado no dia 7 de junho, na cidade de São Luís, Maranhão, no bairro do Cajueiro. O espaço existe desde 2006 e concentra o terreiro e a casa do babalorixá, Ilê próximo ao Morro do Egito, onde foi construído o primeiro terreiro da cidade de São Luís. Na segunda-feira (6), pai Samuel fazia um trabalho espiritual quando arremessaram uma pedra na casa. Na terça-feira (7) pela manhã, enquanto precisou sair para comprar itens religiosos, recebeu uma ligação com o alerta sobre o incêndio.

“Eu não posso sair de casa. Eu tenho até trauma. Quando eu vejo o meu celular tocar e a minha vizinha ligar, eu fico sentado no chão para não cair”. Pai Samuel tem se utilizado da fé para enfrentar o atual momento. “Eu perdi tudo, não tenho mais nada. Só sobrou a minha vida, a vontade de viver e a força que eu tenho em pai Xangô”, conta.

Pai Jonatan de Xangô, coordenador do Centro Nacional de Africanidades e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab) do Maranhão, prestou apoio a Samuel e lamentou o ocorrido. “É uma lástima o que aconteceu. Quem conhece pai Samuel sabe da sua luta e garra, e hoje vê o seu Ilê virar cinzas”. Em vídeo gravado, uma das pessoas lamenta o ocorrido e diz que “não vai dar em nada. A justiça para o candomblecista é zero”.

Os religiosos tentaram registrar boletim de ocorrência no dia 8 de junho, mas foram informados pelo delegado de que “não era com eles”. Eles tentaram se dirigir à delegacia especializada em atender vítimas de ataques de racismo, mas o delegado não estava no local. O BO só foi realizado no dia 9 de junho, quinta-feira, na Delegacia de Combate aos Crimes Raciais.

“Sempre acontecem coisas e nunca temos uma resposta. Esperamos que a perícia e a polícia civil identifiquem o que realmente aconteceu”, conta Pai Jonatan, quem acompanhou o Babalorixá Samuel na delegacia.

Essa é a terceira vez que o terreiro é atacado. Na primeira vez, colocaram fogo em um matagal próximo à casa, e as labaredas quase chegaram ao imóvel. No segundo caso, chegaram a incendiar a casa, que ficou parcialmente danificada. As características semelhantes dos outros ataques levam os religiosos a acreditar que a ação do dia 7 de junho foi criminosa. Apesar disso, dizem não ter nenhum suspeito.

Racismo é arma letal no Brasil

O negacionismo em relação ao racismo também nos faz fechar os olhos para outra realidade: o extermínio de jovens negros periféricos. De acordo com o Atlas da Violência 2020, a taxa de homicídios de negros cresceu 11,5% entre 2008 e 2018, e a de não negros caiu 12%. No total, 75,5% dos brasileiros assassinados na década são negros, com concentração nas regiões Norte e Nordeste. A violência policial é um dos principais motivos.

O levantamento mostra ainda que as mulheres negras foram mais vitimadas do que as mulheres brancas, correspondendo a 68% das assassinadas no mesmo período. Três em cada cinco vítimas são negras. Ao todo, são 4,8 assassinatos de todos os tipos a cada 100 mil mulheres brasileiras – as negras são três em cada quatro vítimas. São alvos de racismo (e todas as nuances e consequências disso) e do machismo, potencializando seu risco de vida de maneira absurda.

Outro ponto que merece destaque: em plena pandemia do novo coronavírus, negros e negras estão entre os que mais morrem pela doença. o racismo institucional aparecem na desigualdade de acesso e tratamento das raças ao Sistema Único de Saúde, o SUS, por exemplo.

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra mostra que 11,9% dos pacientes negros já se sentiram discriminados em relação ao atendimento médico. A população negra também foi proporcionalmente a mais afetada pela covid-19. Uma pesquisa realizada na PUC-Rio mostrou que a as chances de um paciente preto ou pardo analfabeto morrer de covid-19 são 3,8 vezes maiores que as de um paciente branco com ensino superior.

Na Bahia, por exemplo, o boletim da Secretaria de Saúde aponta que pretos e pardos constituem cerca de 70% dos óbitos, demonstrando a situação da mais absoluta vulnerabilidade à qual essa parcela da população baiana está submetida.

De modo geral, a pandemia escancarou ainda mais as diferenças sociais baseadas na cor da pele. Os negros foram os mais atingidos pelo desemprego e vão demorar muito mais para se recolorarem no mercado de trabalho, o que certamente intensificará a desigualdade de renda entre brancos e negros que sempre foi característica marcante da nossa sociedade com heranças escravistas.

Em seu artigo no jornal Nexo, a vereadora baiana Ireuda Silva (PRB-BA) destacou que fomentar políticas públicas em combate à discriminação racial nunca foram tão importantes.

“Em Salvador, cidade mais negra fora da África, aprovamos na Câmara de Vereadores o Estatuto Municipal da Igualdade Racial, que sem dúvida foi um avanço e uma grande vitória no que diz respeito às políticas de reparação na capital baiana. Aqui, a desigualdade tem cor, e resolver a questão racial é um passo fundamental para o fortalecimento da democracia. É necessário combater toda e qualquer forma de discriminação, mesmo quando não nos atinge diretamente. É dever de todos.”


Fonte: Socialismo Criativo - Com informações do jornal Nexo, Alma Preta Jornalismo e The Intercept