Brasil mostra a força da cultura do estupro e o ódio a meninas e mulheres

27/06/2022 (Atualizado em 28/06/2022 | 14:15)

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

Na semana em que a violência contra meninas e mulheres no Brasil ganhou ares de inquisição com a divulgação do caso da criança de 11 anos impedida de abortar após um estupro e violentada sucessivamente pelo Estado e da exposição cruel da sucessão de crimes e violências sofridas pela jovem atriz Klara Castanho, um levantamento confirma que nascer menina no Brasil é uma sentença.

Pelo menos 35.735 crianças e adolescentes, de até 13 anos, foram estuprados no Brasil ao longo de 2021. É o que denuncia levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado a pedido do Instituto Liberta – que atua no combate à exploração sexual dessa população. De acordo com a pesquisa, crianças e adolescentes de até 13 anos representam mais da metade das vítimas dos casos de estupro registrados no país em 2021.

As meninas formam a maioria das vítimas – 85,5% dos casos. Os meninos são 14,5%. Os dados indicam ainda que, ao menos quatro meninas, menores de 13 anos, são estupradas por hora no Brasil. A pesquisa também mostra que, na grande maioria, as vítimas tinham algum tipo de vínculo com o autor desse crime. Até 40% dos casos de estupro foram cometidos por pais ou padrastos. Outros 37% por primos, irmãos ou tios. E cerca de 9% por avós.

‘Não há caso isolado’

A presidenta do Instituto Liberta, Luciana Temer, professora de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), observa que as estatísticas mostram que o caso da menina de Santa Catarina, de 11 anos, grávida após ser vítima de estupro, cujo um parente adolescente é suspeito de ter cometido o crime, “não é um caso isolado”.

Luciana ressalta que, em paralelo à violência sexual, que vitima principalmente menores de 13 anos, o Brasil, por ano, tem mais de 21.600 meninas grávidas antes dos 14 anos de idade.

“Este não é um caso isolado. Nós temos mais de quatro meninas de menos de 13 anos estupradas por hora no Brasil. Como é que a gente não está falando disso o tempo inteiro?”, questionou a presidenta do Instituto Liberta, em entrevista à RFI.

No ano passado, o Disque 100 recebeu mais de 100 mil denúncias de violações cometidas contra crianças e adolescentes. Ao menos 18,6% delas eram sobre violência sexual. Apesar dos altos números, a subnotificação também é grande, já que estimativas são de que apenas 10% dos casos de abuso e violência sexual são, de fato, denunciados às autoridades.

Violência em escala

O caso da exposição indevida, por parte do colunista Leo Dias, de uma atriz que encaminhou um filho para doação após gravidez resultante de estupro reavivou os debates sobre os direitos das mulheres em situação de violação sexual e também sobre o direito à intimidade daquelas que optam pelo aborto legal ou pela adoção.

A discussão, que tomou as redes sociais neste final de semana, foi estimulada por uma sucessão de fatos que expuseram a vítima, a atriz Klara Castanho, que acabou revelando a própria identidade neste final de semana, ao fazer um desabafo via Instagram. A artista teve algumas das suas informações sobre o caso mencionadas inicialmente por Leo Dias no último dia 16, durante participação no programa de Danilo Gentili.

Na ocasião, o colunista, sem citar o nome da atriz, mencionou informações que davam pistas do caso e ajudavam a criminalizar a vítima. “Não é uma coisa feliz. É muito denso. O carma vai ser grande”, mencionou, ao profetizar ainda que “a contar vai chegar” e que o caso seria uma espécie de “maldade”. A atitude do colunista gerou grande repercussão nas redes sociais, levando a discussão ao nome de Klara Castanho.

“Esse caso revela que há uma gigantesca falta de sensibilidade com as mulheres estupradas no Brasil, e essa falta de sensibilidade chega a ser perversa, impiedosa. Nós estamos falando de um tema muito sério”, afirma a diretora do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo, entidade que trabalha com o tema da violência de gênero.
“A Klara, na verdade, se revela uma mulher corajosa, assim como centenas de outras que são vítimas de estupro no Brasil. Toda mulher que engravida após estupro tem o direito à privacidade, tem o direito de encaminhar a criança para adoção, se assim preferir, e ainda tem o direito de interromper a gestação. Isso está previsto no Código Penal desde 1940, ou seja, há 82 anos”, ressalta Jacira.

Proteção legal

Maria Cristine Lindoso, pesquisadora do doutorado em Direito da Universidade de Brasília (UnB) e professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) de Brasília, sublinha que, pela legislação vigente no país, todo cidadão tem direito à proteção de dados.

A inviolabilidade desse tipo de informação é garantida pela Constituição Federal, que prevê o direito à privacidade, e ainda pelo artigo 21 do Código Civil, que dispõe especificamente sobre a inviolabilidade da vida privada. Essa garantia também está expressa na Lei Geral de Proteção de Dados (nº 13.709/2018).

“O caso dela é mais interessante porque envolve dados médicos, que são entendidos como dados pessoais sensíveis, são protegidos pela lei de uma forma diferente justamente pelo risco que podem trazer, pelo potencial discriminatório, pela profundidade da devassa à privacidade que eles podem trazer”, explica Lindoso.

Na exposição midiática do caso, Leo Dias chegou a veicular em sua coluna informações como o sexo do bebê, a data de nascimento e o hospital onde a criança nasceu, rompendo diferentes barreiras que protegem a privacidade dos envolvidos e facilitando a identificação da mãe e do filho. Após a repercussão negativa, o colunista tirou o link do ar no site Metrópoles.

“Sem dúvida nenhuma, é um ilícito civil e pode gerar indenização por danos materiais e morais, sem sombra de dúvida, não só para a mulher como também para as pessoas eventualmente prejudicadas por isso. É o caso da criança, que pode ter os seus direitos de personalidade tutelados pelos pais adotivos, por exemplo”, explica Maria Cristine Lindoso.

A especialista acrescenta que a entrega voluntária do bebê para adoção está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Jornalismo?

Também chama a atenção no caso o fato de os dados veiculados pelo colunista não serem de relevante interesse público, aspecto considerado elementar e condicional para o trabalho jornalístico. A pesquisadora sublinha que a Justiça brasileira já tem sólido entendimento a esse respeito e por isso costuma ser receptiva nos casos de denúncias que apontam desvios de conduta.

“A atividade jornalística é orientada também por princípios constitucionais, pelo viés da informação etc., e o dever de indenizar não necessariamente se dá somente pela violação dos dados, mas também pela falta de comprometimento jornalístico na reportagem e na sua forma de divulgação, por isso caberia indenização”.

Insensibilidade

O caso de Klara Castanho virou alvo de uma série de internautas que embarcaram na onda da condenação da artista. Ao manifestar-se publicamente sobre o caso, a artista fez um desabafo que atraiu as atenções nas redes sociais neste final de semana.

Em um duro relato, ela contou ter sido vítima de violência sexual, disse ter descoberto a gravidez pouco tempo antes de a criança nascer e afirmou ter optado pela doação por entender que esse seria “um ato supremo de cuidado” e por não ter condições de seguir adiante com o bebê.

“Esse é o relato mais difícil da minha vida. Pensei que levaria essa dor e esse peso somente comigo. Entre o momento que eu soube da gravidez e o parto, se passaram poucos dias. Era demais para processar, para aceitar e tomar a atitude que eu considero mais digna e humana”, disse Klara.

“Eu procurei uma advogada e, conhecendo o processo, tomei a decisão de fazer uma entrega direta para adoção. Passei por todos os trâmites: psicóloga, Ministério Público, juíza, audiência – todas as etapas obrigatórias. Um processo que, pela própria lei, garante sigilo para mim e para a criança”, ressaltou, ao contar que ainda teve que lidar com a falta de empatia do médico que a atendeu e de uma enfermeira.

“Ela fez perguntas e ameaçou: ‘Imagina se tal colunista descobre essa história’”, relatou Klara, cujo enredo é marcado pela desproteção por parte de quem atua na cadeia de atendimento a mulheres vítimas de violência.

A vítima conta que foi procurada por meios de comunicação logo após o parto. “Quando cheguei no quarto, já havia mensagens do colunista, com todas as informações. Ele só não sabia do estupro. Eu ainda estava sob o efeito da anestesia. Eu não tive tempo de processar tudo aquilo que estava vivendo, de entender, tamanha era a dor que eu estava sentindo. Eu conversei com ele, expliquei tudo o que tinha me acontecido. Ele prometeu não publicar”, disse, mencionando ainda que foi procurada também por outro colunista.

“Apenas o fato de eles saberem mostra que os profissionais que deveriam ter me protegido em um momento de extrema dor e vulnerabilidade, que têm a obrigação legal de respeitar o sigilo da entrega, não foram éticos, nem tiveram respeito por mim e nem pela criança”, desabafou a atriz.

“Isso pode ser considerado uma violência psicológica no momento do parto”, atribui Maria Cristine Lindoso.

Leo Dias

Após os últimos desdobramentos do caso, com o desabafo público de Klara Castanho, que veio à tona no sábado (25), o colunista compartilhou uma postagem da jornalista Lilian Tahan lamentando a exposição.

“Estive fora do ar por algumas horas. Ao voltar, uma surpresa muito triste. Expusemos de forma inaceitável os dados de uma mulher vítima de violência brutal. A matéria foi retirada do ar”, disse a diretora-executiva do Metrópoles, portal brasiliense que abriga a coluna do jornalista.

Na tarde deste domingo (26), Dias publicou uma nota na coluna pedindo desculpas à atriz pelo ocorrido. “Errei ao publicar sobre Klara. Mesmo que eu não tenha revelado a história, reconheço que não tenho noção da dor dela e peço perdão. Ela foi covardemente exposta. Tenho consciência disso”, disse.


Fonte: Socialismo Criativo - Com informações da Rede Brasil Atual e Brasil de Fato